– Não, hoje não vou mais me permitir ser quem eu não gostaria de ser. – disse Amelie, ainda olhando para aquele espelho.
Esse pensamento gritou quando ela encarava bravamente ao seu reflexo. Olhava profundamente nos olhos tão escuros que mal se podia distinguir as ranhuras da íris. E, naquele dia, naquele momento, não se chamava Amelie. Na realidade, não tinha nome, nenhum.
Sabia perfeitamente os motivos que a levaram chegar nesse ponto. Lembrava de quando havia decidido aventurar-se, abrindo-se para parte que ficava literalmente mais à esquerda do seu corpo. Escutar a imbecilidade que, por algum motivo estúpido, levou-a pensar:
– Não é nada demais para não se tentar.
Agora, um filme cheio de cenas lindas passava em sua cabeça, cenas que a despedaçavam inteira por dentro. E se arrependia de, novamente, deixar que lhe sugassem um pouco de vida.
Estava decidida.
—
– Amelie, querida. Não seja tão dura assim. Realmente, não é nada assim, tão difícil. Nada que você já não tenha sentido antes.
– Lena, você não consegue entender. Cansei dessas pessoas, desses vampiros que se alimentam de luzes que os outros emanam. Na realidade, eu venho pensando em apagar-me um pouco. Que mal farei? Tem tanta gente que reclama, que não entende, que me odeia a troco de nada.
– Você está exagerando.
– Bla bla bla, Lena. Não posso, não vou e não quero mais deixar ninguém estranho entrar. Chega, isso que as pessoas insistem em enxergar como brinquedo fechou. No more tickets.
– Ok, ok… Só não vá fazer besteira.
Amelie gargalhou, uma gargalhada irônica. Uma gargalhada que poucos ouviram um dia. Lena, que estava a seu lado há quase 20 anos, nunca ouvira. Assustou-se, não reconheceu sua amiga.
– Você está muito magoada.
– Estraçalhada.
– Precisa ficar forte.
– Estou trabalhando nisso.
– Está decidida?
Gargalhou de novo.
– Como nunca, Lena.
Amelie levantou-se, deu um último gole na taça de vinho, secou a boca com o dorso da mão e repetiu, com um sorriso maléfico:
– Como nunca.
Jogou uma nota de cinquenta reais na mesa, virou-se e saiu sem olhar para trás. Lena, preocupada, cogitou ir atrás, mas desistiu. Voltou a mesa de conhecidos para dar gargalhadas de alegria.
—
Ela traçou um caminho reto e determinado. Chegou ao lugar que tanto conhecia. Apertou o botão do interfone. Um voz sonada, doce, que cortava seu coração de maneira surpreendente, atendeu.
– Amelie?
– Preciso falar com você. Desce.
Cadu esfregou os olhos, vestiu um moletom qualquer – estava relativamente frio para o mês de janeiro. Desceu.
– Você não deveria ter feito isso, Cadu.
– O que?
– Sugado minha luz, idiota.
– Do que você está falando?
– Sabe que eu sempre vi pessoas como você fazer isso comigo. Sempre, em toda a minha vida. Hoje eu simplesmente cansei. Olhei no espelho e cadê meu brilho? Cadê eu? Tá aí, ó, desperdiçado, estraçalhado nesses lençóis bregas e usados da sua casa horrenda com chão de piso frio… Até seu piso é frio…
Ela riu ironicamente e falou baixinho:
– Meu Deus, como não percebi isso antes…
– O que tem meu piso a ver com toda essa história, Amelie?
Ela gritava, desesperada:
– Você sabe de que cor é o piso do meu apartamento? É de madeira, quente, aquecido. Com belos tacos que fazem aqueles barulhos confortáveis quando pisamos, sabe? Escolhido a dedo para aquecer. E sabe o que isso significa? Que eu sou uma pessoa quente, que eu seu uma pessoa humana, que corre riscos quando sente que deve… Uma pessoa que sente pra caralho.
– Amelie…
– E sabe o que seu piso horrendo, frio, branco e sem nenhuma sujeira significa, esse piso que você próprio escolheu? Que você é desesperado por ordem, por não deixar as coisas saírem do seu controle. Que você é frio, como seu chão. E que qualquer sujeira que surgir na sua vida, você vai limpar, sem cerimônias, com um pano que dói os olhos de tão branco, embebido com Veja perfume festa das flores. Você é ridículo.
– Amelie…
– Ridículo, Cadu. E sabe o que eu mais quero fazer agora? Subir lá na sua casa com uma porra de uma marreta e arrebentar todo aquele chão ridiculamente branco. Arrebentar até não sobrar nenhum piso de porcelana ou sei lá qual material imbecil que é feito aquilo lá… Deixar tudo no concreto, deixar tudo cinza. Talvez, assim, você perceba essa porra de vida fria que você tanto se gaba…
—
Amelie voltou poucos minutos depois com uma marreta. Cadu, falhamente, havia deixado a porta aberta. Ela, com toda a raiva, começou a marretar o chão. Cadu gritava:
– Você tá louca? Para com isso, sua desordenada.
Ela batia com toda força a marreta no chão, com uma raiva que nunca havia sentido… Mas o chão não cedeu. E ela havia tentando muito. Cadu, a seu lado e modo, pedia gentilmente para ela parar.
Uma hora depois, percebeu que não conseguiria estraçalhar nada. E estava exausta. Sentou, apoiado-se na marreta e chorou desesperadamente. Cadu ainda tentou abraçá-la. Ela resistiu, balbuciou qualquer coisa. Desistiu de tudo aquilo, levantou e saiu correndo, sem saber pra onde.