Inacabada

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Hoje tronsformo-me em chuva
Por um boneco de outrem.
Mas não por inveja
Ou qualquer possessão.
Apenas pela saudade de brincá-lo.

Amanhã, talvez, seja o boneco
Que, ao ganhar uma vida inexistente,
Uma vontade quase impossível,
Transforme-se em tormentas
E tente mover montanhas.

Mas hoje, cegamente, só penso
Em esquecer aquela beleza
A diversão e os olhos
Tento existir sem lembrar
E apressar o relógio.

Porque palavras são esquecidas
Promessas enfraquecem
Sentimentos se equilibram frágeis
Quando o tempo não é igual.

Será que um dia nossos relógios estarão compassados?

Na Rua

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Arrisco-me, mas saio. 

Para andar de trem, 

para andar de bike,

para andar de carro, 

para andar e ponto

e para correr. 

 

Sento na rua, 

na chuva, 

no bar,

na mesa de fora,

na feira,

no chão,

no degrau.

 

Vou à praça

ao parque, 

à avenida, 

à ciclovia,

ao outro lado.

 

Saio para fora, 

fumo um cigarro,

espero o carro,

espero o sol

espero o lugar.

 

A janela é aberta 

A deixar a cidade,

o vento,

a chuva,

e o cheiro entrar. 

 

Porque sou de fora,

Sou da rua. 

Tomo chuva, 

tomo sol,

tomo vento 

e sempre saio. 

 

E talvez morra 

Ou me morram

Por ver na rua

a principal arte. 

o palco

a convivência, 

a vida.

 

Não é shopping, 

ou é prédio

ou teto

ou tédio

A cidade é na rua.

Conformidade

Hoje só quero aquilo que você quer me dar. Chega de exigir, pedir, implorar. Chega de querer mais. Não vou mais fazer isso. Não vou pedir horas, companhia ou sentimentos além daqueles que vierem voluntariamente de você. Hoje, vou apenas receber. Eu até te darei coisas, a troca não deixará de existir. Mas darei exatamente aquilo que você me der, na mesma intensidade, na mesma hora. Além disso, não vou mais. Não cruzarei mais essa linha. Porque estou bem cansada de tentar levar-nos para uma direção mais segura, de remar sozinha contra a maré, de pedir para você remar comigo sem saber se é isso que você quer. Daqui para frente, só darei o próximo passo quando e se você o dar.

Vou me esforçar de maneira sobre-humana para lutar contra qualquer vontade minha que não tenha correspondência e intensidade exatamente igual em você: escrever, pedir, abraçar, conquistar. E uma força ainda maior para conseguir não pensar em querer mais, não pensar tanto em você, não sofrer tanto assim. Lutarei contra os meus impulsos e a minha natureza de querer ver tudo resolvido o quanto antes, atropelando tudo.

Ainda ficarei do seu lado, mesmo que no marasmo. Pode ser até que um dia eu canse, porque já sabemos que meu tempo não é o mesmo que o seu. Mas, mesmo assim, comprometo-me que mais adiante só seguirei quando e se nossos passos forem iguais e paralelos. Não vou mais me adiantar, não vou mais colocar a minha intensidade a frente da sua. Manteremos o curso na sua direção, sua velocidade, sua intensidade.

Porque não quero mais competir, quero compartilhar e construir juntos o que decidirmos juntos construir. Não quero puxar, empurrar ou definir rumos sozinha. Agora quero seguir o ritmo junto contigo, mesmo que, para mim, seu ritmo seja lento e pareça que nunca sairemos do lugar.

E, caso tudo isso me entendie, eu vou para longe de novo, disparo correndo para outra direção, mas com a certeza que farei sem estardalhaços. E, principalmente, sem enxergar sozinha o que não existia, vendo exatamente o mesmo que você. Porque aprendi com você que para sonhar, só se for junto; para ver o futuro, só se vermos juntos juntos; para considerar o próximo passo, só se concordamos em andar juntos. E nada mais do que isso.

Quando a gente ensina

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A gente ensina pessoas, ensina muito. Na realidade, eu aprendo muito mais que ensino, mas consigo ensinar um bacadinho de gente. Ensino um pouco de mim, um pouco das minhas paixões (mesmo que adormecidas), um pouco da minha visão de mundo (mesmo que torta).

Vou contar uma experiência recente. Uma pessoa passou a interessar-se sobre fotografia nos últimos meses. E aconteceu de eu estar lá, na hora certa e no lugar certo, para passar algumas coisas do que aprendi nesses quase 10 anos de fotografia (não vou falar profissional, porque eu já me distanciei desses títulos). E fui explicando profundidade de campo, ISO, abertura, exposição, teoria de cor… Tudo isso que nós, que fizemos SENAC, vimos em quatro anos.

É bonito ver crescer em alguém a paixão por algo que é minha paixão. É lindo ver os olhos vidrados e brilhando quando falo de fotojornalismo de guerra, de Clube do Bangue-bangue, Magnum e afins. Parece magia, porque o é de fato. E, então, consigo entender porque tantos profissionais escolhem o caminho da ensino, mesmo com os péssimos salários.

Mas o ponto aqui é que percebi que ensinar é aprender, muito mais do que ensinar. Porque você redescobre-se apaixonado novamente, você lembra dos seus primeiros anos, daqueles em que você descobriu a sua paixão. Eu, por exemplo, lembro das discussões eternas de quando vimos com a Simonetta que a fotografia não é espelho da realidade… Ou das aulas do Serginho, que nos obrigava a sair pra fotografar em qualquer lugar, de qualquer jeito…

Tenho aprendido muito nesses últimos meses, ensinando e aprendendo! Preciso agradecer… 

——-

Foto de Gabriel Inamine: eu e Milla Puoli, nos bancos do Senac, em 2001 ou 2002 ou 2003! rsrs

Último suspiro de Amelie

– Não, hoje não vou mais me permitir ser quem eu não gostaria de ser. – disse Amelie, ainda olhando para aquele espelho.

Esse pensamento gritou quando ela encarava bravamente ao seu reflexo. Olhava profundamente nos olhos tão escuros que mal se podia distinguir as ranhuras da íris. E, naquele dia, naquele momento, não se chamava Amelie. Na realidade, não tinha nome, nenhum.

Sabia perfeitamente os motivos que a levaram chegar nesse ponto. Lembrava de quando havia decidido aventurar-se, abrindo-se para parte que ficava literalmente mais à esquerda do seu corpo. Escutar a imbecilidade que, por algum motivo estúpido, levou-a pensar:

– Não é nada demais para não se tentar.

Agora, um filme cheio de cenas lindas passava em sua cabeça, cenas que a despedaçavam inteira por dentro. E se arrependia de, novamente, deixar que lhe sugassem um pouco de vida.

Estava decidida.

– Amelie, querida. Não seja tão dura assim. Realmente, não é nada assim, tão difícil. Nada que você já não tenha sentido antes.

– Lena, você não consegue entender. Cansei dessas pessoas, desses vampiros que se alimentam de luzes que os outros emanam. Na realidade, eu venho pensando em apagar-me um pouco. Que mal farei? Tem tanta gente que reclama, que não entende, que me odeia a troco de nada.

– Você está exagerando.

– Bla bla bla, Lena. Não posso, não vou e não quero mais deixar ninguém estranho entrar. Chega, isso que as pessoas insistem em enxergar como brinquedo fechou. No more tickets.

– Ok, ok… Só não vá fazer besteira.

Amelie gargalhou, uma gargalhada irônica. Uma gargalhada que poucos ouviram um dia. Lena, que estava a seu lado há quase 20 anos, nunca ouvira. Assustou-se, não reconheceu sua amiga.

– Você está muito magoada.

– Estraçalhada.

– Precisa ficar forte.

– Estou trabalhando nisso.

– Está decidida?

Gargalhou de novo.

– Como nunca, Lena.

Amelie levantou-se, deu um último gole na taça de vinho, secou a boca com o dorso da mão e repetiu, com um sorriso maléfico:

– Como nunca.

Jogou uma nota de cinquenta reais na mesa, virou-se e saiu sem olhar para trás. Lena, preocupada, cogitou ir atrás, mas desistiu. Voltou a mesa de conhecidos para dar gargalhadas de alegria.

Ela traçou um caminho reto e determinado. Chegou ao lugar que tanto conhecia. Apertou o botão do interfone. Um voz sonada, doce, que cortava seu coração de maneira surpreendente, atendeu.

– Amelie?

– Preciso falar com você. Desce.

Cadu esfregou os olhos, vestiu um moletom qualquer – estava relativamente frio para o mês de janeiro. Desceu.

– Você não deveria ter feito isso, Cadu.

– O que?

– Sugado minha luz, idiota.

– Do que você está falando?

– Sabe que eu sempre vi pessoas como você fazer isso comigo. Sempre, em toda a minha vida. Hoje eu simplesmente cansei. Olhei no espelho e cadê meu brilho? Cadê eu? Tá aí, ó, desperdiçado, estraçalhado nesses lençóis bregas e usados da sua casa horrenda com chão de piso frio… Até seu piso é frio…

Ela riu ironicamente e falou baixinho:

– Meu Deus, como não percebi isso antes…

– O que tem meu piso a ver com toda essa história, Amelie?

Ela gritava, desesperada:

– Você sabe de que cor é o piso do meu apartamento? É de madeira, quente, aquecido. Com belos tacos que fazem aqueles barulhos confortáveis quando pisamos, sabe? Escolhido a dedo para aquecer. E sabe o que isso significa? Que eu sou uma pessoa quente, que eu seu uma pessoa humana, que corre riscos quando sente que deve… Uma pessoa que sente pra caralho.

– Amelie…

– E sabe o que seu piso horrendo, frio, branco e sem nenhuma sujeira significa, esse piso que você próprio escolheu? Que você é desesperado por ordem, por não deixar as coisas saírem do seu controle. Que você é frio, como seu chão. E que qualquer sujeira que surgir na sua vida, você vai limpar, sem cerimônias, com um pano que dói os olhos de tão branco, embebido com Veja perfume festa das flores. Você é ridículo.

– Amelie…

– Ridículo, Cadu. E sabe o que eu mais quero fazer agora? Subir lá na sua casa com uma porra de uma marreta e arrebentar todo aquele chão ridiculamente branco. Arrebentar até não sobrar nenhum piso de porcelana ou sei lá qual material imbecil que é feito aquilo lá… Deixar tudo no concreto, deixar tudo cinza. Talvez, assim, você perceba essa porra de vida fria que você tanto se gaba…

Amelie voltou poucos minutos depois com uma marreta. Cadu, falhamente, havia deixado a porta aberta. Ela, com toda a raiva, começou a marretar o chão. Cadu gritava:

– Você tá louca? Para com isso, sua desordenada.

Ela batia com toda força a marreta no chão, com uma raiva que nunca havia sentido… Mas o chão não cedeu. E ela havia tentando muito. Cadu, a seu lado e modo, pedia gentilmente para ela parar.

Uma hora depois, percebeu que não conseguiria estraçalhar nada. E estava exausta. Sentou, apoiado-se na marreta e chorou desesperadamente. Cadu ainda tentou abraçá-la. Ela resistiu, balbuciou qualquer coisa. Desistiu de tudo aquilo, levantou e saiu correndo, sem saber pra onde.

A má escolha de Michiko

Lisboa, Portugal (ph: Flavia K Cabral, junho 2009)

Lisboa, Portugal (ph: Flavia K Cabral, junho 2009)

 

Michiko sempre foi uma mulher armada. Cheia de máscaras, nunca preocupou-se muito em sentir. Ouviu dizer que isso, na realidade, era um problema sério. Conveceram-na que, caso continuasse assim, se transfomaria em máquina sem perceber e arrependeria-se do que não tinha sentido ao longo da vida. Diziam a ela que a vida era curta demais para racionalizar tudo, que o certo era simplesmente viver um dia de cada vez. Por isso, decidiu que passava da hora de permitir-se sentir.

Então, Michiko pegou suas duas pernas, e sua coragem, e traçou caminhos diferentes. Decidiu que, nesses caminhos, se permitiria sentir um pouco mais, abrindo partes de si que nunca tinham sido acessadas. E todas as pessoas que a rodeavam perceberam. Alguns, aproveitando a porta aberta, entraram arrebentando tudo. Outros, estranhando, afastaram-se um pouquinho por não reconhecê-la. Poucos mantiveram-se ao seu lado, como sempre estiveram, e entenderam de fato o que se passava.

Ela viveu alguns meses dessa forma, sentindo sem se preocupar com o depois. Quando deu por si, viu-se despedaçada em sentimentos fantasiosos, longe da realidade, e machucada sem ao menos saber o porquê. Sentiu amor, saudade, paixão, amizade, euforia, mas sentiu muita dor. Pois que veio então o arrependimento por ter-se aberto, talvez para pessoas erradas. “Antes, tivesse continuado armada. Antes tivesse continuado a racionalizar”, pensava Michiko.

Passou algum tempo achando que nunca conseguiria fechar essa porta, mas um belo dia, acordou sem paciência. Decidiu não querer mais ter contato com essa parte de si. “Que fique escondida, como um monstro, nas profundezas da minha mente (e do meu coração). Vou colocá-la na caixa mais funda da minha existência, na parte mais imersa do iceberg, jogar tudo para o alto e voltar a viver como antes”. E simplesmente juntou tudo que tinha, toda a força que conseguiu reunir e bateu a porta pesada na cara dos outros.

Agora, não tem certeza se a porta se marterá fechada por muito tempo. Espera que, se caso a porta abra sozinha, que pelo menos esteja prepada, armada e fortalecida. E é nisso que, nesse momento, está trabalhando.

 

Clara – O Final

Český Krumlov, República Tcheca. (ph: Flavia K Cabral/ abril, 2012)

Disseram-na que Clara esta numa colina próxima dali, debaixo de uma imensa árvore. Viram-na ali pela última vez, disseram.

– Mas será que ela estaria ali ainda?

– Provavelmente. Não parecia que iria a outro lugar.

O caminho era longo, mas tranquilo. Niko ansiava pelo momento de reencontrar Clara e passava tanta coisa em sua cabeça que nem sentiu a distância. Parou diante de um cercado que abrigava um montante de árvores tão denso que não conseguia enxergar o lado de dentro. Acompanhou o alto cercado preto até achar a entrada, um portão de decoração art nouveau preto com detalhes dourados. Abriu-o devagar, ouviu um incômodo ranger. Sentiu um gelo na espinha – mau presságio, diriam.

Poucos passos e o denso bosque abria-se em uma pequena clareira. No meio, uma única árvore de cerejeira, estranhamente florida para aquela época do ano. Ao pé, havia uma pedra de cor quase azulada que cercava-se por coloridas flores. Um forma humana estava deitada naquele platô. Ao aproximar-se, percebeu: era Clara, mãos cruzadas na altura do coração, com um lindo vestido azul claro e semblante pacífico. Tocou-lhe o rosto, estava gélida, pálida. Niko nunca tinha visto Clara assim, tão sem vida. Descruzou-lhe os braços, balançou-a devagar, depois mais forte e mais forte. Clara não respondia, Clara jazia.

Não conseguia acreditar no que via. Gritou de desespero com Clara aos seus braços, lágrimas que escorriam de seus olhos molhavam o vestido azul. Era uma cena desesperadora, digna de filmes de guerra. Após um longo soluço, Niko abraçou forte aquele corpo, na esperança de transmitir um pouco de sua vida a ela (naquele momento, nada parecia tão importante como trazê-la de volta). Mas Clara não esboçava reação, não abria os olhos. Largou-a delicadamente, parecia pesar 120 quilos agora. Escorregou ao lado do platô, sentando-se expremida e amassando algumas flores. Ficou ali sentindo-se o ser mais impotente e imbecil do universo.

Não era religiosa, mas orou e pediu para todos os deuses e santos que vinham em sua cabeça, das mais diferentes crenças, que trouxessem Clara de volta. Suplicou por horas, baixinho, atolada em seus joelhos… Não percebeu quando entrou no mundo dos sonhos.

Em Clara abriu-se um pequeno buraco, bem na altura no coração. Um buraco vermelho vivo, que emanava uma luz azulada, como um raio. Niko tentou ver lá dentro, mas nada enxergou. Colocou uma mão sob a outra e tapou-o completamente, a luz escapava-lhe pelos dedos. Aos ouvidos de Clara, enconstou os lábios e, como se quisesse soltar um feitiço, falou:

– Volte a vida, minha querida, faço qualquer coisa que quiser. Ando com você pelo mundo o quanto desejar, volte por favor.

Nada aconteceu.

Niko, que continuava a tapar aquele buraco com as mãos, sentiu uma espécie de força sugá-la para dentro. Assustou-se e, num impulso, retirou as mãos rapidamente. A luz que escapava pelo buraco ficou ainda mais forte. Imaginou que poderia ser a alma de Clara escapando por ali e, para evitar que isso acontecesse, tapou-o novamente o mais forte que podia. Então, foi completamente sugada pelo buraco, de uma vez só.

Nesse exato momento, Niko acordou. Abriu o olhos, mexeu os braços, esfregou os olhos. Não lembrava de ter se deitado. Sua visão desembaçou, viu um pedaço de céu azul e flores de cerejeira. Olhou as mãos, não reconheceu-as como suas. Olhou para seu corpo, estava com um lindo vestido azul claro. Levantou-se do platô. Encostou os pés no chão, pés de Clara. Sentindo a relva, espreguiçou-se com prazer e  partiu contente a viver. Duas almas livres, um só corpo compartilhado.

Clara – Capítulo 9 (o penúltimo)

MoMa, New York City (ph: Flavia K Cabral/ dezembro, 2009)

As primeiras coisas que Niko sentiu ao sair pela porta foram o calor do sol em todo seu corpo, o ar puro e livre e o vento. Este último, de maneira completamente estranha, passava até por entre os dedos de suas mãos e balançava livremente os fios dos seus cabelos. Ouviu o tilintar de seus brincos levamente, sentiu as extremidades do seu corpo esfriarem. No dia que Clara contara sobre o vento, imaginava que a sensação fosse despertar algum tipo de dor. Mas agora que vivia-o de verdade, percebeu-se em quase torpor de tão incrível que era simplesmente sentí-lo (como poderia algo que tocava sem permissão seu corpo inteiro ser tão bom?).

Estranhou a textura do chão lá de fora, esverdeado e desregular. Ao pisar, sentia um leve incômodo, mas teve certeza que se acostumaria aos poucos. Sorriu. Era realmente muito bom estar lá fora. Lembrou dos olhos de Clara; queria celebrar este momento com ela, contá-la de seus sentimento (como é lindo tudo isso aqui, né?), abraçá-la forte e agradecê-la por a ter levado lá fora. Sentiu um aperto no coração tão grande que todo aquele momento tornou-se triste. Se tivesse feito isso antes, talvez Clara não teria ido embora. Talvez agora estariam juntas, em qualquer outro lugar, ou ali mesmo. Mas a vida não é tão simples, as escolhas passam e, asnos e pasmos, não percebemos quando elas simplesmente se vão. Parece que as chances entram em trens e partem adiante, tornam-se de outras pessoas, desaparecem ou morrem. Era mais ou menos isso que Niko sentia – o que doia bastante, a ponto de não ser plena vivendo essas novas experiências.

Virou-se para trás e viu a porta por qual saiu. O que faria agora? Tinha uma paisagem inteira para percorrer, sentindo-se sozinha e perdida. Mas estava decidida a rever Clara, nem que fosse para despedir-se. Olhou para os dois lados, escolheu a direita e partiu.

Andou por aí pelos planos, subiu algumas colinas, viu tanta coisa diferente. Experimentou novos sabores, viu novas cores, ouviu sons e músicas que Clara tanto gostava. Conheceu pessoas interessantes, emendou algumas conversas válidas, mas nunca tão belas e profundas. A cada coisa nova que conhecia, valorizava mais os momentos que passou com a menina que escancarou seus planos. A cada esquina que dobrava, lembrava-se disso. Primeiro com dor, depois com uma espécie de alegria e gratidão por ter vivido de forma tão simples um amor.

Realmente estava vivendo muita coisa. Sentimentos bons e ruins que se misturavam como guachê. E, como guachê, encontravam-se vestígios do que tinha sido aquela cor, mas logo transformavam-se em outra coisa. Era realmente difícil o mundo lá fora, havia muita dor, porém era belo e perfeito em seus defeitos. Talvez, os mais desentendidos ou menos despertos, opinassem que o melhor seria permanecer dentro de casa, protegida. Niko, contudo, percebia que essas pessoas simplesmente não tinham imaginação ou visão. Viver naquela prisão já não era possibilidade, por mais que fosse o mais seguro a se fazer. Agora, na realidade, já não ligava para manter-se racional, queria sentir de tudo.

Virou numa rua de paralelepípedos enormes, casinhas coloridas margeavam-na. Escolheu a mais avermelhada e entrou. Não conseguiu conter a felicidade quando finalmente encontrou o destino de Clara.

Clara – Cap 8.

Petit Palace, Versailles. (ph: Flavia K Cabral/abril 2012)

Quando percebeu que Clara não voltaria, Niko foi tomada por uma tristeza que fazia anos que não sentia (aliás, já tinha sentido isso alguma vez?). Pensava em como era fácil amar quando existe a concretude do olhar, do tocar e do sentir ao vivo. Descobriu o quanto dói saber que todos aqueles momentos não se repetirão jamais. Não entendia direito porque isso acontecia, não sabia explicar porque agora e, nesse momento, arrependia-se de não ter saído com Clara. Porque agora dar um passo para a fora segurando aquela mão parecia tão mais fácil do que não vê-la nunca mais.

Mas Niko decidiu que voltaria a ser feliz na vida que tinha antes. Sentou no chão, na escuridão. Abraçou suas pernas e encarou o quadrado amarelado. As pernas formavam um X, cobrindo-lhe os seios; a cabeça pendia no joelho direito, os cabelos soltos e lisos quase tocavam o chão. O olhar vagava pelos contornos do quadrado. Foi só então que ela se deu conta de como era pequeno aquele espaço, era sufocante (como poderia ter se considerado feliz ali?).

Lembrou do dia que Clara a achou. Parecia tão distante no tempo e no espaço. Percebeu que, aos poucos, sua memória pregava-lhe peças e sumia com momentos e frases importantes que tinha prometido a si mesma e a Clara nunca esquecer. E viu que não adiantava esforçar-se para lembrar, estava aos poucos esquecendo. Perguntou-se porque não tinha escrito tudo o que Clara disse a ela… Arrependeu-se novamente. Não poderia esquecer. Esticou a perna esquerda e colocou o pé no quadradado amarelado e, ao sentir o calor do sol na pele, chorou copiosamente. Chorou de saudade, por ter sido abandonada, por ter sido medrosa, por estar esquecendo, por si mesma e por Clara.

Tentou chamá-la baixinho. Mas aquela conexão que um dia foi tão forte já não existia mais. Antes, ao chamá-la, sentia a resposta, como se existisse um canal exclusivo que não fosse desse mundo, que fosse além de tudo aquilo que conhecia como humano (como poderia ela criar algo assim com alguém que conhecia há tão pouco tempo?). Mas naquele dia não, nada vinha, nada.

O silêncio da casa a incomodava, talvez isso fosse o que mais cortasse seu coração. Entrava no banho e passava minutos (ou horas) sentada no chão, sentindo a água tocar no seu corpo e as lágrimas escorrerem no seu rosto. Pensava que Clara tinha cansado de tudo aquilo. Na verdade, achava ela uma filha da puta e covarde por ter ido embora sem falar nada. Passou a considerar que aquela mulher era, na verdade, doente: ansiosa, impaciente e egoísta. Ela não entendia o próximo e só pensava em si mesma, em satisfazer-se, no prazer que tinha de atormentar a vida dos outros, em deixar feridas abertas e sangrando por aí sem olhar para trás. Porque, na realidade, Clara tinha necessidade de ser lembrada e fazia isso pela dor e não pela alegria, porque a alegria pressupõe responsabilidade; dor é descaso. Vaca, filha da puta, desumana.

Socou o chão uma, duas, três vezes, até sentir o sangue escoar em suas mãos. Olhou-se no espelho, bem dentro de seus olhos, e socou-o com raiva. Ajoelhou-se, espremeu-se, deitou-se, chorou-se e dormiu. Dormiu por dias. Acordava de vez enquando para chorar. Um dia, levantou-se, decidida a sair dali e procurar por Clara, pedir para ela voltar. Vestiu-se bela, arrumou os cabelo e foi até a porta. Parou por um instante diante da luz, respirou fundo e deu o primeiro passo.